Hamburgum
"Dêem-me um ponto de apoio e levantarei o mundo"
Arquimedes definiu, assim, aquela que seria uma das grandes descobertas da humanidade - a alavanca. Não se contentando com a descoberta da alavanca e das suas vantagens, Arquimedes brindou-nos com a roldana. Dizem os entendidos que nada funciona na indústria moderna sem uma roldana. Não sei. Sou um bocado mais céptico acerca disso mas, enfim, teremos de confiar nos especialistas. Séculos mais tarde seria a vez de Mac Gerdts, certamente movido pela roldana, inventar o rondel. Não sei se já perceberam as semelhanças mas, parecem óbvias - ambos são redondos, ambos são funcionais, ambos facilitam a vida ao mundo, enfim, ambos servem, especialmente, a construção. Não há nenhum edifício importante no mundo industrializado onde não tenha sido utilizada uma roldana. Quer tenha sido um prédio de habitação em Lisboa, um complexo industrial em Tóquio ou uma igreja em Hamburgo. E é por aqui que devemos começar, pelas igrejas de Hamburgo. Hoje em dia, não há igrejas em Hamburgo que não sejam feitas com o rondel. Mas não só as igrejas. Também fábricas de açúcar, cervejarias ou indústrias têxteis. Todo um complexo mecanismo que nos leva a elevar as mais imponentes igrejas da cidade livre e hanseática de Hamburgo.
Hamburgum é o resultado de uma paixão. Ninguém, pela minha convicção, conseguiria fazer um jogo com esta dimensão temática e também pedagógica, sem revelar uma grande aproximação física e emocional com a cidade em causa - Hamburgo. Estamos a falar de um jogo que resulta, provavelmente, mais de uma tentativa de homenagear uma cidade, um sítio, uma história, que de outra coisa diferente. E aqui, as primeiras e inevitáveis comparações com as outras duas obras do mesmo autor (Antike e Imperial - "Jogo do Ano 2006"), deixam de fazer sentido. Deixam de fazer sentido porque estamos a falar de jogos diferentes. Se estes primeiros dois jogos têm uma importante componente bélica e confrontacional, Hamburgum retem, sobretudo, uma componente positiva, de construção, de evolução. Muito mais individualizante e, deste ponto de vista, num registo mais "eurogame", procura ser um jogo de gestão de recursos em que acabará por vencer aquele que melhor conseguir gerir as debilidades e as forças das estratégias possíveis.
Como denominador comum temos o incontornável e já referido rondel, arma de arremesso para os grandes "tabuleiristas" modernos. E é aqui que as estratégias devem ser pensadas por forma a optimizar as acções e atingir os melhores resultados. Em alguns casos temos de ser mais versáteis, mas não é essa a principal característica de Hamburgum. Mais uma vez, aqui, surgem grandes diferenças em relação à utilização do rondel. Em Imperial, sobretudo, havia uma forma mais livre e autónoma de executar as acções. Neste novo jogo o rondel funciona de forma mais cristalizada, mais mecanizada, sem espaços para ser criativo mas, com uma justiça reforçada. Ou seja, as diferenças de opções para quem tem mais vantagens com determinados recursos (quer sejam barcos melhor colocados ou produtos em stock ou dinheiro para gastar), não são tão acentuadas nem resultam em clivagens demasiado grandes. Mesmo correndo o risco de ser precipitado, nesta primeira crua apreciação, direi que o rondel de Hamburgum pode ser o melhor de todos os rondeis. Não que traga alterações tácticas ou estratégicas importantes, nada disso, antes por causa da tal justiça e igualdade entre oportunidades que parece criar. Talvez haja algum exagero em atribuir esta componente somente ao rondel. Haverá, certamente, grande responsabilidade nisso da própria forma como o jogo está desenhado, ou não estivéssemos nós a falar de um dos nomes incontornáveis do "tabuleirismo" mundial, Mac Gerdts.
Posto de parte o rondel vamos tentar perceber o jogo enquanto jogo. Ignorar o que o autor fez anteriormente (pelo menos tentar ignorar) e descobrir o que é que ele acrescenta.
A produção de Hamburgum é muito boa. Numa amostra do que a Eggert Spiele já nos habituou, todo o material é excelente. A qualidade do tabuleiro, dos tokens, dos cubos, das regras, tudo é excelente. A única característica que me aparece como menos boa, e nem sequer será uma opinião que gira consenso, é o grafismo/cores dos diferentes tipos de bónus. É necessária alguma habituação.
Na componente estratégica há algumas debilidades a registar, sobretudo do ponto de vista das alternativas para a vitória. Em Hamburgum ganha quem fizer mais pontos vitória através de doações que ajudem a construir as igrejas. E daqui não há que fugir. Talvez este seja o primeiro dos jogos de rondel em que não há muitas diferenças entre aquilo que se vai fazendo de turno para turno e o resultado intermédio e final dessas acções.
Transparece alguma repetição. Mas não é, de todo, uma repetição negativa. A ideia que fica é a de que vence quem mais depressa conseguir cumprir um objectivo o que, por si só, é normal. Esta é uma característica comum a centenas de outros jogos. Na base reside uma tendência para premiar quem mais acertar no timing das decisões. O timing, não havendo muito a descobrir por detrás do rondel e das suas acções, revela-se como um dos elementos fundamentais. Ainda por cima realçado pelo facto de Hamburgum não ter qualquer factor sorte associado, nem de cartas nem de dados. Ou seja, estamos a falar unicamente do efeito que alguns jogadores têm nas acções dos outros.
Enquadrado nestas acções realizadas pelos outros jogadores estão duas, especificamente, mais óbvias: a construção de edifícios e a colocação de barcos no porto. A primeira provoca, para além da retirada de possiblidade de aquisição por parte dos adversários de alguns edifícios (estes são limitados e, portanto, inacessíveis a todos), uma baixa no valor de mercado de alguns produtos. Ou seja, por cada vez que alguém constrói uma cervejaria o preço da cerveja, aumentando a produção, cai. O jogador receberá mais cerveja da próxima vez que a produzir através do rondel mas esta valerá menos. E valerá menos também para os adversários. A segunda, a colocação de barcos no porto é, provavelmente, o mecanismo mais inteligente do jogo. O porto tem 3 espaços. No primeiro, cada barco pode despachar (vender) um produto, no segundo dois e no terceiro três. O problema é que, de cada vez que um barco é acrescentado ao terceiro espaço e este estiver cheio (os espaços enchem com um número de barcos igual ao número de jogadores. Por exemplo, num jogo a 4 jogadores, cada espaço do porto pode levar até 4 barcos) os barcos que estavam no terceiro espaço passam para o segundo, os do segundo passam para o primeiro e os do primeiro voltam para as mãos dos jogadores. Esta revela-se uma arma muito importante no decorrer do jogo uma vez que pode obstruir a venda de produtos por parte de um jogador, impedindo-o de realizar dinheiro suficiente, que lhe permita adquirir os materiais de construção necessários às doações que tinha em mente fazer. Grande parte da interacção entre os jogadores passa por estes dois mecanismos.
A outra componente mais clássica de Hamburgum é a construção dos edifícios ser feita de forma sequencial no tabuleiro, seguindo uma lógica de proximidade. Ou seja, só se pode colocar um edifício num espaço predeterminado desde que o jogador em causa tenha feito uma doação a essa igreja desse bairro ou então se já tenha construído, antes, um edifício vizinho que lhe permita manter a sequência. Numa lógica de "carreirinha" tipo Thurn und Taxis ou até Twilight Struggle. Claro que os espaços não são coabitáveis o que, obviamente, acrescentam alguma tensão ao jogo podendo provocar algum desconforto quando algum jogador, por não conseguir estabelecer um caminho legal, não conseguir construir este ou aquele tipo de edifício. Mas também não é uma característica que pareça muito vincada uma vez que transparece, uma vez mais, que os espaços, tendo algumas limitaçãoes, não são, de todo, completamente impeditivos ao desenvolvimento de jogador algum. Ou seja, pode-se não construir aquilo que se quer mas alguma coisa se há-de conseguir construir.
Mas a ideia genérica, como já referi, passa por conseguir oferecer doações às igrejas por forma a, com isso, ganhar pontos prestígio. Esses pontos são ganhos na forma de tokens de bónus que podem ser descontados, em qualquer altura do jogo, desde que se escolha a acção correspondente no rondel - "church". Estes bónus são de vários tipos. Há bónus de 5 Pontos Prestígio em todas as igrejas, há bónus que premeiam tipos de edifício construídos, número de habitantes do jogador num determinado bairro ou no tabuleiro, número de barcos no porto. A única regra decisiva neste acumular de bónus é que o jogo obriga a que cada jogador só possa ter um bónus de cada tipo por descontar. Ou seja, ninguém pode ter dois bónus de habitantes por descontar. Tem de se descontar, pelo menos e assim que se ganha o segundo bónus, um deles. Mas a verdade é que, com a excepção do número de barcos no porto, todos os bónus, tendencialmente e de forma natural durante o jogo, vão sempre melhorando. O timing com que se desconta estes bónus poderia ser mais determinante e interessante para o jogo, uma vez que, sem excepção, no final do jogo, todos os bónus ainda por descontar são descontados. Ou seja, não há prémio para o risco, não há penalização para quem não pontuou os seus bónus. Os barcos são a excepção que confirma a regra, uma vez que são o único bónus que flutua (literalmente) em quantidades de menor para maior e vice-versa durante o decorrer do jogo e, portanto, convém escolher o melhor timing para os pontuar.
Esta será uma das características do jogo que eu acho menos interessantes. Mas, talvez corroborando a minha opinião de que não se trata de um jogo que queira ser diferente de positivo e construtivo e quase só com coisas boas (apesar de difícil de jogar), esta regra exista.
Com tudo isto, Hamburgum mantem-se como um jogo coerente, de soluções algo distantes entre os jogadores mas real na perspectiva de quem quer jogar um jogo muito bom, muito bem colado ao tema, de uma qualidade em termos de produção excepcional mas que não é brilhante. As vezes que se pensa num Imperial quando se olha para um rondel têm de acabar (nota mental pessoal). Na verdade não me parece, em circunstância alguma, que Mac Gerdts tenha tentado, sequer, fazer um jogo brilhante. Parece-me antes que estamos a falar de um jogo dentro das características normais de um eurogame mas que utiliza, e muito bem, um rondel como mecânica principal. Semelhanças entre Antike, Imperial e Hamburgum? O rondel.
O jogo é muito bom, tem uma rejogabilidade, para um jogo desprovido de sorte, muito boa, tem alguns edifícios diferentes incluidos numa variante às regras normais e tem um lado B de Hamburgum que se chama Londinium. É um jogo com um "peso" muito acentuado, não é um jogo de família nem um jogo onde se possam introduzir não jogadores, mas pode ser uma forma de dar a conhecer um rondel, a quem ainda por ele não passou. Joga-se em menos de 90 minutos, com alguma facilidade, mas só depois de se conhecer e, acima de tudo, é um jogo honesto e que não deve passar despercebido só porque não conseguimos deixar de o comparar aos outros jogos do autor (eu incluido). Se avaliarmos o jogo pelo jogo temos aqui um belíssimo 8. À vontade!
Paulo Soledade