Vinhos

“Abafa-te, abifa-te e avinha-te”. Este nosso conhecido provérbio, comprovado disparate no que a conselhos de saúde diz respeito, ganha agora um novo significado. Vai a noite já fria, batem até umas bátegas de água nos estores, à mesa um bom bife e um bom vinho, a conversa entre amigos sai fluida e agradável. E para sobremesa? Vinhos! Com um queijinho, talvez. Ou em forma de jogo de tabuleiro. Levantam-se rapidamente os pratos sujos e as travessas, arredam-se para o lado copos e garrafas, enrola-se a toalha de mesa o suficiente para libertar espaço para o tabuleiro principal e os quatro individuais (nota mental: falta-lhes um espaço para o copo de vinho que o anfitrião não deixará de devolver a cada um dos comensais). O jantar prolongou-se um pouco demais. Não há jantares rápidos entre casais amigos. Toca a começar então. Antes, a explicação. Já vai longa e parece que as dúvidas subsistem. O melhor é começar a jogar e depois vai-se refrescando as memórias a cada passo. Por falar nisso, vai mais um trago.

A coisa não está fácil, o efeito soporífero do vinho ataca e ainda não se chegou à altura da feira dos vinhos! As raparigas desistem pouco depois das 12 badaladas, contadas por metade. Trocam a mesa pelo sofá e ligam a tv ainda a tempo do “5 para a meia-noite”.

Os rapazes fazem duas rondas a dois para consolidarem a coisa e, também eles mais despertos, recobram o entusiasmo e prometem voltar à carga noutra ocasião. A dois ou a três, cedo, sem tinto!

“Vinhos” é nome de jogo de tabuleiro. Tão jogo que Vital Lacerda já é nome de “designer”, escrito numa caixa bem bonita, sóbria na arte de Mariano Iannelli e espessa na já habitual qualidade, que se estende aos componentes, da What’s Your Game.

O tabuleiro é arrumadinho, como se esperaria, algo atravancado mas bem elucidativo das opções de acção que se colocam a cada jogador. O “quadrel”, colocado ao centro, funciona bem, de forma clara quer no imediato quer em termos de indicação da fase em que está o jogo. O mapa de Portugal é pequeno mas chega para demonstrar a riqueza e variedade da nossa produção vinícola.

“Vinhos” não encerra nenhuma ideia genial, mas soma muito boas ideias. Algumas correm o risco de se verem repetidas em outros jogos com a mesma temática, como é o caso do sistema de envelhecimento dos vinhos, outras resultam da mistura de concepções de outros títulos, como é exemplo o “quadrel”.

Nada disto diminui o jogo, porque é este conjunto de boas ideias e a sua feliz articulação que fazem de “Vinhos” uma das melhores propostas de 2010, suficientemente refrescante para nos cativar para uma outra partida mais.

Claro que a apreciação por portugueses dum jogo que aborda uma temática nacional sairá, à partida, beneficiada. Em contrapartida, o facto do autor ser nosso patrício pode funcionar em sentido contrário dada a nossa proverbial tendência para minorar o que de bom se faz por cá.

Mas a quem se destina preferencialmente este jogo?

Não será aos nossos amigos do jantar de há pouco, já vimos. Para além de se estender demasiado no tempo, o jogo apresenta outras pequenas particularidades menos felizes a quatro.

Mas a dois ou, preferencialmente a três, “Vinhos” brilha, sobretudo na sua envolvência temática e na diversidade de caminhos de jogo que oferece.

Não fosse a “feira” e eu diria que se trata de uma proposta para gente não “gamer” que não deixa de apreciar um bom desafio.

De facto, a “feira” traz ao jogo uma densidade inusitada e talvez deslocada. Isto é, o que acrescenta em termos de mais valia estratégica não é compensado pelo que retira de fluidez e clareza. Tenho dúvidas de que chame ao jogo apreciadores de propostas mais complexas e alguma certeza de que afastará definitivamente gente do universo mais familiar.

Além disso, em termos de concepção, desvia-se dum rumo até aí coerente na fase da feira. Cada um de nós, melhor ou pior, conhece a generalidade dos passos que é necessário dar na produção dum vinho. Mais difícil será encontrar quem, mesmo que por alto, saiba como funcionam as feiras de vinhos. Aquele jogo dentro do jogo desvia-nos do mesmo e parece um copo cheio quando já parámos de beber!

“Vinhos” tem muitas particularidades que vala a pena descobrir e parece-me que tal só acontecerá ao longo de um bom número de jogatanas. Outra boa nota vai para o facto de se confirmar com este lançamento a excelência das propostas da editora. “Vinhos” não desmerece “Vasco da Gama” e aguça a expectativa para o próximo título.

E falta falar do óbvio. Isto é muito Portugal! 2010 trouxe uma realidade nova: jogos de tabuleiro nados e criados no nosso país! Claro que me situo no universo dos jogos de tabuleiro tal como o concebemos hoje em dia, isto é, naquela realidade que é projectada pela feira de Essen e sustentada através do BGG. Há jogos portugueses no Board Game Rank. Estão lá, são apreciados por centenas de pessoas e jogados por esse mundo fora! Com objectivos de mercado diferentes e distintas concepções, quer na génese, quer na produção, são rótulos que às qualidades que têm enquanto produto jogo de tabuleiro somam o grande mérito de reposicionar Portugal no mundo “boardgamer”.

Agora, Portugal não é já só a designação duma família de jogos, é uma nação com designers e chancela. E Vinhos é hoje o expoente máximo dessa realidade.

José Carlos Rôla - rola@spielportugal.org

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