Vasco da Gama

De alma cheia!

Um dos meus primeiros jogos foi “Goa”. Trouxeram-mo da Holanda, pedido às cegas, só porque teria a ver com a gesta dos portugueses de quinhentos.

Sou portanto suspeito ao fazer uma análise critica a Vasco da Gama. O nome e o tema não poderiam ser mais portugueses! E lá dentro, tabuleiro aberto, há mais motivos para inchar este peito lusitano.

A verdade é que este avanço positivo que o jogo já leva na nossa apreciação antes sequer de romper o celofane, poderia resultar numa enorme decepção se não tivesse seguimento depois de aberta a caixa.

Mas tem, descansem as almas lusitanas.

Vasco da Gama apresenta um tabuleiro bonito e funcional, componentes de qualidade e consegue colar bem o tema, sobretudo na fase de navegação. E como jogo, é um belo desafio.

Comecemos então pelo tabuleiro. Dividido em quatro áreas, ajuda a perceber a mecânica e permite rapidamente entrever uma primeira ordem natural de colocação dos nossos discos de acção. A simbologia e inscrições recordam-nos as regras básicas para cada área de actuação e as divergências para jogos a 2 ou a 3.

Apoiando-se na típica mecânica de “worker placement”, o jogo coloca-nos perante um dilema adicional cada vez que temos de decidir onde actuar.

“Quem não arrisca não petisca”. Na hora de escolher o pequeno cilindro que dará conta da ordem pela qual jogaremos, há sempre quem solte, nem que seja apenas em pensamento, aquela nossa bem conhecida expressão. Não explica a nossa decisão, apenas ameniza o desconforto que aquela nos provoca. É como se enchêssemos o peito de ar antes de nos abalançarmos numa acrobacia arriscada.

E é aqui que Vasco da Gama ganha a sua notoriedade. Mesmo que um ano depois, talvez já não o apreciemos como devido, a verdade é que este aditivo à tradicional mecânica de “worker placement” faz a diferença e puxa um jogo bom para aquele patamar dos jogos mesmo bons.

E arriscar, compensa?

Sim, eu diria que sim. Porque mesmo que outro alguém decida ir ao limite e arriscar ainda mais do que nós, estragando assim aquela almofada que é, no limite, ir buscar as moedas e pagar a pouca sorte, há nessa atitude algo de roleta, de poker, que traz ao nosso jogo um pouco mais de sal e pimenta…

Mas um jogo mesmo bom não pode apenas assentar numa boa ideia. Tem de se espraiar em mecânicas simples que o deixam fluir e respirar uma suficiente densidade em termos estratégicos. Vasco da Gama consegue isso. O autor poderá ter sido tentado a simplificar o jogo, cortando-lhe alguma da sua complexidade (a minha mulher, jogadora ocasional, teria agradecido), mas não o fez. E ainda bem.

Num dos tais espaços do tabuleiro poderemos recolher favores: do rei D. Manuel I, que nos concede uma acção extra; de Bartolomeu Dias, que tem noites em que dá muitos pontos de vitória; de Girolamo Sernigi, que nos oferece um barco já prontinho a lançar ao mar; de Dom Francisco Alvares, que faz questão de juntar aos marinheiros mal amanhados alguns missionários.

Numa outra área recrutaremos a tripulação, com um pequeno mas entendido capitão à cabeça.

Falta ainda arranjar barcos, o que conseguiremos numa terceira zona de acção.

Por fim, temos o Índico e a costa de África desde o Natal até Calicut, já na Índia.

É neste espaço do tabuleiro que obtemos pontos. Afinal, é aqui que se navega e navegar é preciso.

O caminho para a vitória tem rotas certas mas nem por isso seguras. Isto é, não é garantido que determinada estratégia vencedora redunde em sucesso na próxima vez. Tal como nas façanhas de quinhentos, há dificuldades inesperadas em cada viagem.

E mesmo usando todas as manhas de “gamer” batido, quais marinheiros encartados, não é garantido que maximizar o numero de acções e potenciar ao máximo cada acção, garanta o êxito.

De facto, procurar ter uma acção extra pode impedir outras benesses, como o auxílio dos tais missionários ou os 2, quando não 4, pontos de vitória que Bartolomeu Dias oferece. Adquirir para seu serviço dois barcos duma vez pode depauperar a nossa bolsa e limitar a capacidade de investir no futuro. Arrebanhar 3 ou 4 marinheiros por uma moeda é tentador mas assemelha-se ao actual recurso a trabalho temporário: pouco especializado e pouco produtivo. Meter dois barcos a navegar duma penada, para além de não ser propriamente fácil, pode condicionar uma navegação mais amealhadora de pontos…

Como na maioria dos grandes jogos, também em Vasco da Gama cada oportunidade de acção é preciosa. E o dinheiro é curto, sendo avisado procurar que a navegação dê alguns trocos.

Estamos pois perante um jogo rico, na sua apresentação, nas alternativas estratégicas que proporciona, na interacção q.b. entre jogadores…

Essa interacção, provoca por vezes algum tempo de espera entre jogadas e não é necessariamente por termos à mesa alguém particularmente lento, basta que a jogada anterior estrague aquilo que já havíamos planeado fazer. Mas o que parece à primeira vista um aborrecimento, pode trazer-nos novas perspectivas sobre o rumo a seguir. Como a tal janela que se abre quando se fecha uma porta, o que até nos pode levar a soltar um insólito “obrigado por me lixares”, que, por esta vez, não terá nada de irónico envenenamento verbal!

As limitações do jogo, que as tem, estão sobretudo ao nível dos pormenores. A maior acontece no jogo a 4, onde pode dar-se o caso de em determinadas rondas não ser possível para os últimos 2 ou 3 jogadores fazer mais nada a não ser recolher uma moeda ou duas. Outro exemplo é a transformação dos barcos, de projecto para prontos a navegar, que dá ocasião a dúvidas ou entropias como a acumulação de tripulação na área de jogo de cada um.

Depois há manhas que o jogo permite a quem as conhece, mas que serão prontamente combatidas numa segunda oportunidade de qualquer jogador mais perspicaz. É o caso dos favores: estão equilibrados, mas não existindo disputa dos mesmos é fácil o Bartolomeu Dias dar cerca de 20 pontos ao mesmo jogador ou D. Manuel I permitir que alguém jogue mais 4 ou 5 vezes do que os outros! Ou a aposta nos barcos certos: como terá acontecido nas viagens para a Índia nos idos de quinhentos, em princípio, enviar barcos fracos não compensará; estes dificilmente subirão pela costa africana e ao primeiro vento contrário estarão fora de jogo…

Vasco da Gama é nome de um grande português, nome de ponte e de clube de futebol, nome de pastelarias na minha Coimbra e de um restaurante numa rua onde passo todas as manhãs que levo o meu filho à escola. Agora é também nome de um grande jogo que guardo no meu armário.