Brass

Brass, review e considerações estratégicas

Aqueles que tiveram a oportunidade de ler a minha crítica ao Brass, a primeira parte, perceberam que se tratava de um jogo confuso, numa primeira abordagem, que depois degenerava, no bom sentido, num jogo bem oleadinho (azeite) parecido com um bacalhau estranho, mas bom. É esta a primeira impressão que o jogo deixa.

Refazer uma crítica, ou melhor, complementar uma crítica, não é muito habitual mas, porque gosto muito do jogo (lá se foi o factor surpresa!), decidi fazer uma abordagem mais séria para aqueles que, a lerem isto, quiserem ficar com uma opinião mais vincada daquele que é, para mim e até agora, o melhor jogo publicado em 2007. Mais que uma crítica este texto pretende também (assumidamente pretensioso) dar algumas pistas de estratégia.

O ambiente, para os mais distraídos, é a Revolução Industrial. O local, que foi parte charneira deste movimento dentro da amiga Grã-Bretanha, é o Lancashire. O objectivo é explorar carvão, fornecer ferro, produzir algodão e armadilhar a indústria portuária por forma a conseguir vendê-lo.

A primeira coisa a dizer sobre Brass é que não há como usar uma táctica única, vencedora. Ou seja, os caminhos para a vitória são mais que muitos. Eu gosto de jogos assim. Pontuar é vender os nossos recursos através das nossas indústrias/portos, fazer links e construir shipyards. A diferença reside em como chegar a isso.

Early game, o problema do income...

A fabricação/venda de algodão ou exploração de outros recursos (ferro e carvão) constituem a forma mais óbvia de pontuar. Aqui Brass traz-nos uma dificuldade muito grande: como conseguir rendimentos suficientes para aguentar a pressão dos gastos? Já estamos habituados a levar com grandes dificuldades financeiras nos jogos de Wallace e este, não é excepção. Primeiro que tudo temos de conseguir atingir um equilíbrio entre os pontos vitória que pretendemos e um rendimento equilibrado. Não é fácil. As escolhas são mais que muitas, mesmo (ou sobretudo) no início do jogo.

Por exemplo, uma fábrica de carvão de nível 1 é barata, custa apenas 5£, mas também só dá 1VP's e desaparece no início do Rail Period. O income que ela permite (4£) é importante? E os VP's justificam o sacrifício da sua construção? Eu diria que não. Parece ser dos piores investimentos iniciais. Aliás, na minha opinião, não estamos a falar de um investimento, estamos a falar de um gasto. O melhor investimento em carvão no início do jogo são as indústrias de nível tecnológico 2. Mesmo que não haja ferro na mesa (ou seja, teremos de ir buscar ferro à demand track para se poder fazer um upgrade), pagamos 1£ por esse ferro e seguimos imediatamente para a construção de uma mina de carvão de nível 2. Esta custará 8£ (7 + 1), mas dará um income de 7£, dá mais 1 VP que a anterior de nível 1 e não desaparecerá do tabuleiro no rail period. Ou seja, estamos a falar, neste caso sim, de um investimento.

Mas esta lógica é estática, fixa? Não. Se eu quiser ser o primeiro a meter carvão na mesa e ser o primeiro a ter income positivo posso claramente apostar nessa mina de carvão de N1 porque ela só fica com dois cubos de carvão que eu posso gastar de seguida (pelo menos um deles) tentando construir uma fábrica de ferro. Neste sentido, a fábrica de ferro de N1 tem muito mais virtudes que a de carvão. Primeiro porque custa o mesmo (5£), o income é só menos 1 (3£) o que por si só não justifica a sua construção, mas ela será usada neste período (isso é certo!) e dará 3 VP's ao seu dono o que, considerando o custo de uma fábrica de algodão de nível 1, por exemplo, e que é 12£, só fornece um income de mais 2£ e os mesmos pontos vitória (3VP). Para além de que, esta fábrica de algodão, para pontuar, precisa de mais um turno (a venda) e, nunca esquecendo, gastando mais dinheiro joga-se em último no turno seguinte o que, por si só, pode merecer um grande sacrifício.

Aqui já se justifica o porquê de tantas dúvidas em redor das melhores estratégias de Brass ou "como ganhar Brass em dois períodos"! Mesmo no início do jogo, as dificuldades das escolhas são imensas.

Depois vem a questão do empréstimo. Nunca vi ninguém aguentar o período do canal sem fazer, pelo menos, um empréstimo. Lá está. Como o income é sempre muito curto, muito mais curto que os investimentos, o empréstimo é sempre um recurso obrigatório. Portanto, assumindo que é obrigatório, a pergunta que fica é: "qual a melhor altura para o fazer e quanto pedir?" Estudando a grelha de income percebemos que a melhor altura para o fazer é estando na posição 10, ou seja, income 0. É essa a posição que ocupamos no início do jogo. Na verdade, por cada 10 de empréstimo (até um limite de 30 na mesma acção), teremos de recuar uma banda (cor) na income track. Ou seja, estando no 10 passaríamos (assumindo um empréstimo de 30£) para o 7 (-3£), estando no 15, por exemplo, regressaríamos ao 10. Enquanto no primeiro caso descemos 3 quadrados, no segundo, descemos 5. Se, em termos lógicos, manter-nos no 0 é melhor que ir para o -3£ de income, se prepararmos as coisas por forma a que a nossa segunda acção (sendo que a primeira teria sido o empréstimo) seja uma venda de algodão de N1 para um nosso porto de N1, também, o income aumentaria em 8 pontos para os 15, no primeiro exemplo, e para os 18, no segundo.

Aqui resta-nos a opinião de cada um e seguir o critério das escolhas que cada um considerar melhor. A posição no jogo pode justificar quer um quer outro exemplo, na certeza, porém, de duas coisas: o timing do empréstimo é fundamental porque, na maioria das vezes, determina a necessidade, ou não, de um segundo ou mesmo terceiro, e a quantia a pedir terá de ser sempre (sempre!) o valor máximo, 30£. E terá de ser o valor máximo porque 30£ muitas vezes nem sequer chega a ser suficiente e porque o maior custo que um empréstimo tem é o da acção, ou seja, gastar uma acção para fazer um empréstimo tem um custo demasiado elevado para se falhar na quantia a pedir.

Portos

Os portos de Lancashire têm uma vantagem: custam pouco a construir, o que permite um maior desafogo financeiro, e são relativamente simples, em termos de cartas disponíveis, de conseguir construir. Há algumas indústrias que podem depender das cartas certas, normalmente de localização ou de ferro, mas os portos, pelo menos sempre que eu joguei o jogo, estão mais ou menos acessíveis. Os portos, em combinação com as fábricas de algodão, se se conseguir os pares (fábrica/porto), são um belíssimo apoio, quer em termos de income quer em termos de VP's. O problema é conseguir aguentar que os nossos portos não sejam usados para vendas de outros jogadores.

A estratégia de inundar o Lancashire com portos, que eu já tentei, pode ser adequada mas exige alguns riscos. Um porto, por si só, dá um ratio investimento/income+VP's muito favorável. Um porto de N1, por exemplo, custa a "bagatela" de 6£ (somente + 1£ que a fábrica de carvão N1) e dá 3£ de income, o que não é um resultado muito favorável, mas permite também, e isso é fundamental para se saber valorizar, 2 VP's. A questão é que não são esses VP's que são importantes mas a possibilidade de vender para o nosso porto uma fábrica de algodão. Ou seja, mesmo que queiramos resumir os portos aos número frios das somas [comparação: carvão N1 custa 5 £ = 4£ + 1 VP, ou seja entram 5 saem 5 ; ferro N1 custa 5£ + 1 carvão = 3£ + 3 VP's, ou seja entram 6 saem 6; porto N1 custa 6£ = 3£ + 2 VP's, ou seja entram 6 saem 5] não nos podemos nunca esquecer da possibilidade em aberto da utilização do porto para venda de algodão. Não é um valor quantificável é só uma probabilidade de sucesso em aberto. Mas essa probabilidade, no fundo, é grande parte da estratégia de Brass porque é sobre ela que todos jogarão contra todos.

Associado ao valor real dos portos, está também a possibilidade de, com um crescimento barato e sem necessidade de recursos exteriores (os portos não exigem nem ferro nem carvão), pontuar muito em termos de VP's. Os portos não são grande fonte de income mas são-no em termos de VP's. Seguindo o critério rígido dos números: os portos todos (8 portos) construídos e usados custam 60£ e dão 42 VP's (estou a considerar que só sejam pontuados uma única vez).

As fábricas de algodão, por exemplo, para perfazer os tais 42 VP's (construir as 3 N1 + 3 N2 + 2 N3) precisam ser gastos, ignorando os 5 cubos de carvão mais os 2 de ferro, 110£! Obviamente que as necessidades da procura e da oferta é que fazem o azeite do jogo e ninguém fará fábricas ou portos que não se usem mas, na verdade, não me lembro de uma única vez em que um porto não tenha sido usado e lembro-me de, algumas vezes, uma fábrica ou outra não tenha. Também é verdade que ninguém vai construir as fábricas de algodão por ordem e, obviamente, os upgrades fazem saltar as fábricas, mais ou menos rapidamente, de nível.

Vender algodão

Há algumas teorias que dizem que vender algodão não é o essencial em Brass. Tendo a concordar. Não só pelo investimento abrasivo que mostrei acima como também pela dificuldade em situar fábricas em locais mais próximos de portos a serem usados. A parte Leste do Lancashire é onde as fábricas de algodão mais habitam. Toda a zona de Manchester e ainda as cidades a Norte e a Sul. Para escoar esse algodão é importante ligá-lo a uma fonte externa, quer seja um porto quer seja um mercado. Os portos ficam longe, normalmente e obviamente, na parte Leste da ilha com Liverpool em destaque. Os mercados externos servem o propósito de contornar a necessidade dos portos e também servem para, estrategicamente, "queimar" possibilidades aos nossos adversários. A média de utilização do mercados externos anda em torno dos 1,90 por venda, ou seja, com 8 espaços legais para fazer a venda, estamos perante uma média de 4 vendas por período.

Os primeiros a chegar diminuem as possibilidades dos outros mas, também aí, não menosprezar as penalizações. Se uma venda no início para o mercado externo dá um income do valor da fábrica mais 3£ ou mesmo 2£ do mercado, já o resultado final de 1£ ou 0£ é muito penalizador. Claro que, mesmo que seja só para cortar alternativas aos adversários, a venda para este mercado é prioritária enquanto ele for seguro mas, na verdade, associar a cada venda um income mais favorável de 3£ (porto N1) ou mesmo de 4£ (porto de N2) pode fazer uma diferença importantíssima. No resultado de duas vendas, por exemplo, poderemos estar a falar de uma diferença de 3£ ou 4£ no income o que, por si só, já dá para um empréstimo.

Ainda assim, a utilização do mercado externo é sempre mais barata em termos de investimento e acaba sempre por compensar. Se eu preciso de vender duas fábricas, preciso de dois portos. Mesmo que estes sejam de N1 eu gasto, junto com as fábricas, também de N1, 36£ para um income de 16£. Se eu optar (e eu opto!) pelo mercado exterior gasto 24£ das fábricas e recebo um income de 15£ (em média nas duas primeiras vendas) ou 12/13 nas duas segundas. Ainda assim, a utilização do mercado externo compensa porque, conforme disse, para além do investimento ser menor retira possibilidades aos adversários. Por outro lado, e não fazendo uma análise tão líquida em custo benefício, vemos que os portos poder-nos-iam ter dado também mais 4 VP's (o mercado externo não dá VP's) o que, sendo importante, na minha opinião, não teria sido fundamental para o resultado final do jogo. Importante será cada jogador analisar todas as perspectivas e escolher, sendo que, também não nos deveremos esquecer, que a utilização dos espaços de portos, preenchendo-os, pode ser importante na nossa estratégia.

Os links

Já vi jogos serem vencidos através da construção de links, essenciais para se conseguir movimentar decentemente dentro do mapa, e colectores sôfregos de pontos vitória. De reparar que os links podem significar, em grande parte dos jogos, mais de 30% da pontuação final. O problema de fazer muitos links reside na limitação de oportunidades. Podemos dizer que os links mais importantes são os que rodeiam Manchester e Liverpool, as cidades mais proeminentes. O problema é que, para se conseguir construir muitos links gasta-se muito dinheiro, e perde-se a oportunidade de fazer outras coisas que gostaríamos de fazer, como construir fábricas ou fazer vendas. Mas está mais ou menos assente que os links têm duas vertentes fundamentais: garantir pontos vitória e permitir grande mobilidade dentro do tabuleiro.

Passar o período

Como já disse anteriormente, conseguir jogar em primeiro, gastando menos dinheiro no turno anterior, pode ser uma arma portentosa. Como opção, começar por ser o primeiro a jogar no Rail Period é, para mim, fundamental. Para isso teremos de deixar algumas coisas preparadas e, o último turno do Canal Period é essencial.

Um par de "coisas" de nível 2 no tabuleiro é essencial. As próprias regras falam disto, o próprio Martin Wallace aconselha a que seja assim mas, jogando, percebemos que os contornos que isto assume são muito mais complicados. Que tipo de indústria se deve deixar? Onde? Porquê? No Rail Period o carvão começa a rarear. Como por cada link construído é necessário um carvão, e neste período já se podem construir dois links numa acção, o carvão está sempre a esgotar. Deixar, portanto, uma ou mesmo duas fábricas activas de carvão de um período para o outro é essencial. Mas só se for para nós usarmos. Ou seja, deixar carvão numa circunstância em que os outros, porque serão eles a jogar primeiro ou porque estão melhor situados, usarem, é uma coisa a evitar. Se formos construir uma mina de carvão no penúltimo turno do Canal Period devemos ter em conta o sítio de onde sairemos no turno seguinte e se é estrategicamente o local ideal ou não. Muitas vezes não existe o local ideal mas, na minha opinião, uma fábrica de carvão em Manchester, Bolton, Bury ou até em Wigan pode servir.

O ferro também é essencial, muito cedo no jogo, para os upgrades. Os que não se fizeram até esta altura vão, certamente, fazer-se, e as construções começam, a partir de agora e quase todas, a exigir ferro. Passar o período com uma fábrica de ferro instalada é sempre uma boa opção e, neste caso, o local onde ela está não é tão fundamental. Primeiro porque o ferro não necessita de uma linha de comunicação construída e segundo porque quase todos os sítios de ferro do Lancashire (e são 5) estão bem situados para iniciar este novo período, sendo que um deles não pode existir ainda (Barrow-in-Furness).

Os links, significando então, grande percentagem dos pontos no final do jogo, não devem ser menosprezados. Há quem defenda que a primeira jogado do Rail Period pode ser a construção dos links em torno de Manchester, normalmente, dando uns 18 VP's no final e permitindo uma muito boa amplitude de movimentos no mapa. Sabemos que estes links serão difíceis de conseguir porque estarão disponíveis para todos no início do período. Uma das estratégias a usar é, por exemplo, fazer um upgrade e pedir um empréstimo no final do Canal Period e (considerando que com estas acções foi o jogador que menos dinheiro gastou) iniciar o Rail Perido construindo 4 links. É uma das possibilidades que, obviamente, tem de ser tacticamente bem estudada conforme aquilo que se acha que os adversários vão fazendo ou tentando fazer.

Shipyards

Para alguns o busilis do jogo. Para mim não é. Não é porque, ao contrário da maior parte das pessoas, não os acho, nem sobre nem sub valorizados. Acho-os equilibrados com as restantes coisas que o jogo tem para oferecer e só os acho um bom investimento caso não se perca muito tempo de volta deles. Canalizar um jogo inteiro, uma estratégia inteira para a construção dos shipyards pode, na minha opinião, não ser muito bem jogado. Os shipyards têm a vantagem dos VP's mas a desvantagem do número de acções que precisam e dos recursos utilizados (dinheiro, carvão e ferro). Exige muitos upgrades e, portanto, muitas acções. Por exemplo, construir um shipyard no Rail Period exige 3 acções, se não se fizer mais nada. Claro que isso pode ser mais razoável num jogo a 3 jogadores (ainda assim procurando outros equilíbrios na estratégia), porque cada jogador tem mais acções e, portanto, os upgrades sairão mais valorizados ou, pelo menos, serão mais necessários, mas num jogo a 4 é muito arriscado não equilibrar com outras coisas, "gastando" uma percentagem de acções tão elevada numa única estratégia.

O primeiro shipyard, aquele que pode ser construído em Liverpool no Canal Period, não me parece um bom investimento visto significar 10VP's para um investimento de 16£, sobretudo considerando uma altura do jogo em que não há muito dinheiro para gastar e o shipyard, em termos de income, é quase insignificante. Manifestamente exagerado, na minha opinião embora esta afirmação ainda seja feita sem muita experimentação nesta questão.

Brass então é...

Brass é a "p*** da loucura". O jogo não é perfeito, obviamente, mas dá-me ideia que o Wallace (mestre) acertou em cheio. Adoraria ter criado este jogo, acho-o portentoso cheio de estratégias possíveis, muito envolvente para todos os jogadores e jogável até duas horas. Não haverá muitos jogos assim. Desde já anuncio, aqui e em primeira mão, e mesmo sob risco de me enganar alguma coisa, não muito, a minha nota é 10 (dez)!

Paulo Soledade